sábado, 30 de julho de 2016

Sobre o espetáculo ‘Enquanto Todos Dormem’...

Pedro (Renan Mendes) e Luiz (Thiago Cazado) em cena de 'Enquanto Todos Dormem'
Foto> Marcus Valdetaro

Thiago Cazado emociona, mais uma vez, com texto intenso e verdadeiro

Passam das três da manhã quando começo a escrever estas linhas. Lá fora, todos dormem. E “Enquanto Todos Dormem”, revivo, na memória, as cenas do espetáculo escrito, dirigido e protagonizado por Thiago Cazado. A peça está em cartaz em Belo Horizonte este fim de semana e vale muito a pena ser vista, revista e lida, já que o livro com o roteiro e belas fotos está disponível para aquisição após o espetáculo.
Para falar sobre “Enquanto Todos Dormem” é necessário se desligar um pouco do padrão jornalístico. Aquele que exige um verbo no título, um lead, um sub-lead e impressões sem emoção.  É preciso fugir do texto formal e se aventurar na experiência poética, e em uma escrita mais pessoal, pois é assim que percebemos a concepção de Cazado em cena. Para relembrar com o fulgor que ela merece, podemos nos dar ao luxo de uma boa taça de vinho e uma música calma, talvez a trilha sonora de um filme, para revivermos os momentos vistos no palco...
É necessário entender que o texto de Cazado é simples, mas não entendam como simples algo pobre. Não. “Enquanto Todos Dormem” é riquíssimo. É belo. É intenso. Conheci o trabalho do diretor ano passado, quando “Relatos Não Oficiais Sobre o Andar 43” esteve na capital mineira. Embora sejam tramas diferentes, percebemos em ambas a delicadeza e a intensidade ao se tratar de temas tão reais, tão próximos e muitas vezes, temas mal compreendidos pela sociedade.
Vale ressaltar que, enquanto “Relatos...” partia para uma narrativa feroz já nos primeiros minutos, “Enquanto Todos Dormem” é mais calma. A relação entre os dois personagens vai se construindo aos poucos. O romance vai surgindo vagarosamente, graciosamente. Remete a algo juvenil: quase aquele ‘primeiro amor’ da adolescência. Algo que começa imperceptível e que, aos poucos, ganha forma, tamanho e importância. Quando percebemos, já não conseguimos nos desvencilhar. Nem queremos.
Juntos, Pedro e Luiz testam seus limites físicos, emocionais e espirituais
Foto: Marcus Valdetaro

Este é o drama principal dos personagens Pedro e Luiz. Especialmente Pedro, que tenta lutar mais contra esse amor, afinal, é essa a imagem e a postura que a sociedade espera dele. Luiz representa a vontade de viver o proibido, de querer experimentar aquilo que socialmente é condenável.
Juntos, os dois descobrem que podem ir além dos seus limites: emocionais, espirituais e físicos. Podemos comparar a produção com filmes como “Titanic” (James Cameron, 1997) – vale ressaltar que, ano passado, também comparei “Relatos” com este filme, mas tal comparação é inevitável e só ajuda a entender a beleza da história contada aqui – de um lado, temos um personagem submisso, que anseia por se libertar, por viver, de outro, temos o personagem libertador, aquele que ensinará o caminho para a felicidade. Podemos ainda citar “Romeu e Julieta”, “Ghost” e até mesmo “A Lagoa Azul”, já que é uma história de descobertas: descoberta da liberdade, da escolha, do amor...
Mas o amor é impossível. E entendemos, em meio a atos e palavras de Pedro e Luiz, que o amor jamais deveria ser tratado como algo impossível. Os dois passam a entender isso e resolvem seguir. Mas, como o próprio Pedro afirma: muitas vezes, não damos conta de que o tempo não é nosso aliado. Perdemos tempo preocupados com coisas sem importância, como a opinião alheia à nossa escolha, por exemplo. E, quando nos damos conta, não temos mais tempo.
Se os personagens souberam usar o tempo que tinham para explorar este amor ou não, só quem assistir à peça saberá (prometi aos produtores não soltar spoilers, hehehê). O fato é que, “Enquanto Todos Dormem”, narra de modo belo, suave e intenso ao mesmo tempo, uma história de amor. Tão igual e comum às milhares que vemos por aí. Tão diferente em seu próprio contexto.
Além do amor entre os dois jovens, um outro sentimento paira sobre o roteiro: o medo. Medo dos próprios sentimentos, medo da sociedade, medo da guerra. A história se passa em 1938, num cenário pré-segunda guerra mundial. A tensão cresce com o passar dos dias, dos meses. A qualquer momento, nossos heróis podem ser chamados ao campo de batalha. E isso impõe o medo também à plateia, que assiste sem poder ajudar, mas que vive o amor, a felicidade e a dor de Pedro e Luiz.
O que resistirá no fim, se é o amor ou o medo, só indo ao teatro para saber. Mas a surpresa ao final é belíssima... e reconfortante.
Sobre a produção, só podemos parabenizar: o cenário, que simula um centro de treinamento do exército em 1938 é planejado de forma inteligente. Elementos sonoros e jogos de luzes nos transportam para diversos locais: cachoeiras, pedras, mata selvagem sob um céu estrelado e o próprio acampamento militar.
Momentos cômicos ajudam a dar leveza à trama intensa
Foto: Marcus Valdetaro

O contraste do ambiente rústico com os sentimentos tão humanos dão o toque que o roteiro precisava para ganhar vida. As situações cômicas dão o tom de leveza nos momentos certos. Vamos nos envolvendo gradualmente na relação dos personagens. Vamos crescendo pouco a pouco com eles, vamos nos inteirando de suas vidas e interagindo com suas rotinas e escolhas.
No fim, estamos íntimos, amigos dos personagens e torcendo por eles. Os atores Thiago Cazado e Renan Mendes dão um show em cena. Conseguem manter a atenção do público por 80 minutos e nos emocionar diversas vezes. Cabe aqui, uma observação pessoal: não sou muito emotivo. Sou cinéfilo e adoro teatro, mas poucas tramas, tanto na telona quanto no palco, conseguiram me dar um aperto na garganta. Confesso que chorei ao final de “Enquanto Todos Dormem...”

Assim como “Relatos...”, “Enquanto Todos Dormem” nos segue para fora do teatro. Nos acompanha pelas esquinas até chegarmos em casa. E fica na mente por muito tempo. Uma escala de “0 a 10” é pouca para definir este trabalho...
Amizade, Amor, Fé e/ou Medo? O que restará ao final de 'Enquanto Todos Dormem'?
Foto: Marcus Valdetaro